Há uma necessidade de mudança radical na maneira que pensamos o ser humano com a chegada da Internet. Se não passarmos por essa revisão filosófica-teórica teremos muita dificuldade de pensar e agir para acompanhar as mudanças que já ocorrem e ocorrerão cada vez mais.
Quando no século passado Marshall McLuhan – pesquisador canadense – defendeu que o “meio é a mensagem” ele estava abrindo uma nova e importante encruzilhada filosófica para o ser humano. Estava, na verdade, questionando uma “cláusula pétrea” da filosofia humana para a velha e sempre atual pergunta: “Quem somos?”.
McLuhan defendia, assim, não com estas palavras, de que o papel da tecnologia na nossa cultura precisava ser revisto. Que somos mais do que uma espécie bio-cultural, mas uma espécie tecno-bio-cultural, com forte influência das tecnologias em geral, mas, em particular, com forte influência das tecnologias cognitivas, aquelas que empoderam nosso cérebro, tal como as palavras orais e escritas, o rádio, a televisão, o computador, o celular.
Nossa cultura, assim, seria uma tecno-cultura, em que a tecnologia exerce um papel não periférico, mas central na nossa história. E que em alguns momentos elas impõem determinadas mudanças culturais pela sua massificação.
Ou seja, mesmo que possamos imaginar que a cultura seja produtora de todas as tecnologias, ela ao ser criada traz uma quebra de antigos limites culturais. Nossa espécie, então, viveria em tecno-ecologias e que esse ambiente macro sofreria alterações acima da possibilidade de intervenção humana, como é a massificação da Internet, como foi a da prensa, em 1450, com efeitos no que hoje chamamos de sociedade moderna.
Muitos dirão, e é bem comum receber essa crítica, que isso seria um determinismo tecnológico. E que estaríamos fazendo da tecnologia algo muito maior do que ela, quase colocando-a com vida própria. Não é assim que penso. As tecnologias criam barreiras culturais, em que mesmo os mais inovadores não conseguem ir adiante. O que defendo é que quando temos novas tecnologias elas servem de trampolim para uma latência de inovação FEITA POR HUMANOS.
Elas não têm vida própria, mas elas criam a margem do rio, por onde as mudanças que antes não eram possíveis, passem a ser feitas, alterando a conjuntura tecno-cultural-biológica da sociedade.
O melhor é um exemplo prático.
Imaginemos duas cidades separadas por um rio caudaloso que só pode ser atravessado mais adiante, quando fica mais raso e calmo. O tempo para se chegar à outra cidade, via terrestre de carro, é de duas horas e meia, uma hora de estrada de cada lado e mais meia hora de balsa.
Se for construída uma ponte entre as duas cidades, reduzindo este tempo para 10 minutos, com certeza, a história das duas cidades será marcada pela chegada da ponte – uma tecnologia, que quebra uma barreira primeiro ecológica e outra cultural.
Um conjunto enorme de mudanças culturais ocorrerá a partir da quebra dessa barreira ecológica-cultural nas duas cidades. A tecnologia não exerce papel ativo nas mudanças, mas um papel passivo, de viabilização de novo marco nas trocas entre aqueles habitantes.
Se alguém olhasse de fora, com o olhar tecno-cultural poderia dizer que aquelas duas cidades iriam passar por grandes modificações por causa da ponte. Não pela ponte em si, mas pelo que ela quebra de limites do passado e do que ela propicia para o futuro.
Não é a ponte que muda a cultura, são as pessoas, mas sem a ponte as pessoas que queriam determinadas mudança não poderiam fazê-lo. A ponte é uma viabilizadora de mudança cultural desejada. É uma “quebradora” de limites culturais.
E esse é o papel das tecnologias na sociedade: uma “empoderadora” humana para a sofisticação da cultura.
A ponte, não mudou a cultura sozinha, mas abriu às portas para que uma nova cultura pudesse surgir. Deu vazão a um conjunto de ações, vontades, pensamentos, desejos, criando mais outras tantas em espiral.
A nossa espécie, assim, tem que ser compreendida dentro desse “aquário” tecno-bio-cultural que têm tecno-bio-culturais limitações históricas que vão sendo quebradas ao longo do tempo, quando criamos novas tecnologias que nos libertam de amarras do passado e criam novas.
Essa característica de mobilidade bio-tecno-cultural nos dá desdobramentos ainda mais amplos em termos de perspectiva de futuro e de compreensão das mudanças, pois começamos a analisar que, por causa da nossa tecno-característica somos a única espécie do planeta, que cresce sem pedir licença à natureza.
Os outros animais são genético-culturais: a complexidade de seus hábitos tem que ser viável dentro de seus nichos ecológicos, pois eles não podem reinventar a sua própria cultura, que é transmitida pela genética.
A cultura dos outros animais é, na verdade, uma bio- genética-cultura, nós somos uma tecno-cultura-biológica, inventada e transmitida pela própria tecno-cultura, através de tecnologias cognitivas: gestos, palavras orais, escritas e agora digitais.
Nós somos uma tecno-cultura-biológica que se reinventa e, por causa disso, somos a única espécie que sofre de um sintoma que estamos começando a diagnosticar: a Complexidade Progressiva.
Somos os únicos macro seres vivos do planeta que não têm limites demográficos, pois a cada crise reformamos de forma mais ou menos radical a nossa macro-tecno-cultura-biológica.
Foram as nossas inovações que nos permitiram saltar de 1 para 7 bilhões. Veja o quadro:
Para compreender o futuro, e a religião dentro dele, temos que entender que a chegada da Internet se assemelha ao que foi a chegada da prensa, em 1450, que podemos chamar de Revoluções Cognitivas, onde há a descentralização das tecnologias de publicação e validação de conhecimento e a criação de novas alternativas.
Fechamos, assim, com a chegada da Internet um longo ciclo da espécie em que podemos dizer que estamos saindo da imitação das grandes manadas de mamíferos, que se comunicam basicamente pelos sons (palavras orais e escritas) dependentes, por causa disso, de líderes-alfas.
E agora iniciamos um novo macro ciclo cultural, em função da nova complexidade progressiva, trazida por 7 bilhões de pessoas, em direção à colônia dos insetos.
Tais mudanças macro-culturais trazem novos cenários para todas as organizações, incluindo as religiosas. Podemos no caso específico da Igreja Católica lembrar que o próprio monoteísmo se massifica a partir da difusão entre a nobreza da escrita manuscrita (os dez mandamentos são escritos na pedra) e a chegada dos questionamentos feitos pela Reforma de Lutero (1500) só foi possível, através da chegada da prensa.
As religiões são manifestações culturais, que, a meu ver, cumprem um papel organizador na sociedade, a despeito de toda crença e fé. Haverá, se analisarmos o passado, uma macro-tendência também na religião pela descentralização, que é uma característica das Revoluções Cognitivas.
Combate-se complexidade sempre com descentralização e empoderamento cultural dos cidadãos. Haverá, se essas teorias se mostrarem consistentes, um questionamento muito forte, como já está havendo, das antigas estruturas hierárquicas e um possível resgate do lado filosófico das religiões menos por doutrinas e ritos.
Mais racionalismo e menos superstição e milagres. Isso acontecerá dos países mais empoderados de tecnologia para os menos empoderados, com resistências naturais e o surgimento de resistências fundamentalistas, como estamos já vendo.
Haverá mais e mais divisões das Igrejas cristãs, com uma forte tendência politeísta, não no sentido de adoração de muitos deuses, mas de tribos eletrônicas que serão guiadas pela procura de sentido. Revoluções Cognitivas passam as religiões a limpo, aumentando o espaço do racionalismo em oposição a fé supersticiosa.
É um tempo de descentralização, em que novas possibilidades culturais se abrem, saindo de antigos impasses. Não resta dúvida, a história mostra isso, que sempre haverá espaço para a religião (vista como algo mais amplo) como acalentadora de sofrimentos humanos, tanto para um sentido ético, como um aplacamento da angústia da morte.
Mas haverá fortes questionamentos em todo tipo de organização, seja religiosa ou não, que vá contra a macro-tendência da descentralização, de um neorracionalismo, que aponte para um resgate dos conceitos éticos e filosóficos estruturantes, que deram origem ao caminhar das religiões.
Carlos Nepomuceno é doutor em Ciência da Informação, jornalista, pesquisador, professor e consultor macro estratégico.