Para cada tipo de compulsão, há uma indústria interessada – Nepô – da safra e frases de 2011;
Assisti ao bom documentário “Trabalho Interno” sobre a crise americana (que acabou ganhando o Oscar de melhor documentário) muito bem feito, timing ótimo e muita pesquisa, dá uma ótima noção de como e por que o mundo entrou em crise, do ponto de vista financeiro.
Depois, fiquei pensando mais sobre o final do filme que consegue definir bem quem são os bandidos: a ganância desenfreada, Wall Street, o mercado financeiro desregulado. E os mocinhos: o povo americano, enganado pelo lobo mau, que agora precisa, apesar do Obama, criar uma regulação.
Meio preto e branco, né?
O filme termina com a imagem da estátua da liberdade e algo assim:
“Vai ser difícil (regular Wall Street), mas esta luta você vai ter se que enfrentar”.
Se posiciona.
Nada contra filmes engajados, mas acho que, apesar de considerar um bom documentário (na forma e pesquisa) e conteúdo crítico para os padrões americanos, não vai mais fundo em alguns pontos chaves da crise, que foi apenas contornada.
O que refletiria sobre?
A população americana é considerada vítima da ganância.
Porém, os EUA se caracterizaram pela difusão da ideologia dos vencedores.
Quem não consegue chegar lá e ter casas, jatos, carrões é considerado um perdedor.
É o país do vamos gastar, poupar para que?
Vamos nos endividar por que o amanhã não existe.
Vamos se dar bem aqui entre nós e que o mundo (existe mundo?) que fique lá e não venha jogar bomba ou tomar nossos empregos.
Os EUA, assim, são uma grande onipotência nuclear em todos os sentidos.
Não digo que é o pensamento de todos os americanos, que seria uma patetada, mas é o que domina e que é vendido, inclusive, na ideologia em toda a indústria cultural que é exportada.
Freud no livro “Mal Estar da Civilização” quebra um pouco uma visão tradicional cristã sobre o mundo:
A Igreja diz:
“Todos nascem bons e alguns – que escolhem o caminho errado – são maus”.
Freud diz:
“Todos nascem querendo detonar a civilização e só não o fazem, pois a civilização cria mecanismos para não deixar”.
Pelo que vi, até aqui, sou mais Freud.
Portanto, civilização cria equilíbrios sistêmicos, regulações, leis, para existir e impedir que as pulsões humanas transbordem naquilo que seria direito dos outros.
Toda a crise, como aquela, movida pelos espertos de plantão, é um desequilíbrio de que um setor está fora de controle, fazendo coisas, em um determinado ambiente, que precisa ser reequilibrado.
Pelo final filme, nos parece claro, que o mercado financeiro continua igual, os homens do passado estão no governo do Obama, presente.
Regular, como sugere Freud, é preciso!
Mas eles não são o mal, os cristãos que se desviaram, como o filme induz no preto e branco do céu e inferno.
Eles não escolheram o caminho do diabo, eles apenas cumpriram a cartilha vigente:
“Vamos se dar bem!”.
Essa é a ética dominante que os EUA definiram para eles e o mundo, independente do outro.
A civilização ali (claramente) está ela mesmo incentivando a alguns a chegarem no topo da pirâmide.
A civilização está aí para ser usada para os meus interesses.
Quem consegue é o vencedor, sempre sozinho contra o sistema (vide coleção de filmes nessa direção).
A desregulação do mercado financeiro, se dá em outros setores como no caso da saúde, que cada vez tem mais poder de influência no Congresso.
Mostra que os “compulsivos” de Wall Street pela grana, sexo, drogas e rock´n roll continuam lá, dentro do governo Obama e são admirados, pois “chegaram lá” exatamente para fazer isso: se dar bem, conforme viram no cinema e aprenderam na escola.
O filme, assim, não toca na base filosófica, que boa parte dos americanos adora e exporta, são os que compraram suas casas, de alguma forma, que estavam no mesmo jogo.
Enriquecer rápido, ir devagar para que?
Entraram numa arapuca bem armada, mas não só o sistema financeiro os incentivou, mas todo o ambiente leva a isso.
É uma filosofia geral, que o mercado financeiro levou ao último limite e que o mundo todo engoliu e está procurando seguir.
Todos querem – e são incentivados a serem os poderosos de Wall Street, de alguma maneira.
O jogo é esse.
Assim, existe uma questão filosófica mais ampla e geral.
- Conseguiremos levar esse tipo de ideologia do incentivo das pulsões individuais em detrimento do coletivo até quando?
- Conseguirá esse novo ambiente de trocas e articulações em rede digital quebrar também esse tipo de ideologia também nos Estados Unidos?
- Um movimento dos sem-espaço (principalmente imigrantes) por um país diferente?
- Podem os EUA continuarem a defender essa ideologia do “eu” e o resto que se exploda? Até quando?
A crise financeira foi um feitiço que virou contra o feiticeiro.
As organizações de costas para o público.
Os EUA de costas para o mundo.
E o público – embebido de senso comum – engolindo o que a mídia e as universidades difundem.
(Aliás, a manipulação das universidades considero um dos pontos altos do filme, pois retira a pseudo-neutralidade da academia).
A casa caiu.
Perdeu, brô!
Ou seja, o buraco do metrô de NY é mais embaixo.
A regulação do sistema financeiro é a ponta do iceberg de uma reflexão de uma sociedade que incentiva o poder a do eu em detrimento do nós.
Conseguiu essa proeza até aqui, baseado em uma mídia vertical e única.
Acredito que é uma das revisões que o mundo 2.0 mais plugado, esclarecido e com forte poder de articulação tende a rever.
(Tendência é algo, fato é outro. Sugiro ler o livro Presença do Peter Senge e outros que falam sobre isso, um contra-ponto)
Faltam apenas líderes com clareza para puxar o movimento mais filosófico e mais fundo, de revisão básica do conceito da força do Eu contra o nós.
O filme denúncia, mas aponta, a meu ver, para o bandido menos perigoso – um bandido, sim desequilibrado, mas não menos do que o sistema que o criou.
Que dizes?
Nos últimos dias estive me informando sobre o tal movimento Zeitgeist (com o qual não concordo) e portanto venho re-refletindo sobre essas questões, mas desconfio que não tenho nada a acrescentar ao que vc escreveu! 🙂
Você, como sempre, é bem certeiro e abrangente!
Eu gostaria de ter ao menos uma sugestão de reposta para sua pergunta: até quando vamos incentivar as pulsões individuais (instintos genéticos e meméticos ao meu ver) em detrimento da sobrevivência coletiva?
Digo sobrevivência propositalmente pois, apesar de não ver possibilidade da nossa espécie deixar de existir, me parece que perderemos bilhões de humanos (sem contar outros terráqueos) se não partirmos logo para a ação.
Francamente, apesar de me considerar um otimista, não vejo sinais de que as ondas de empatia e mobilização na Internet terão força para criar momentum online, muito menos offline (ainda não me convenci que mobilizações como a do Egito e Líbia são sustentadas expontaneamente online).
Receio que nossa civilização esperará o cataclisma do esgotamento dos recursos para agir e sempre há a possibilidade da Internet virar uma vasta rede de satisfação virtual para que as pessoas suportem sua miséria real enquanto uma minoria desfrutará dos recursos cada vez mais escassos.
Bem… De qq forma, uma hora acaba tudo, ou uma hora a satisfação virtual deixa de ser o suficiente e revoluções acontecem.
Otimista como sou ficarei torcendo para nossa espécie estar prestes a descobrir a fórmula da evolução para não precisar mais avançar pela revolução…
Querido Roney, vejo que seu otimismo está ficando diferente.
Ao pensar sobre isso, diria que você não é otimista (cristalizante, coisificante), mas é portador de otimismo e a sua taxa atual é menor do que o das nas nossas conversas anteriores.
Você pergunta:
Bom, acredito que não podemos ver isso como fatos fechados em si mesmo. Tudo é processo, tensões entre forças que disputam entre si um determinado equilíbrio.
Freud, sugiro ler “O mal estar da civilização” logo de cara diz que o ser humano vem detonar a sociedade e esta se protege dele.
Assim, o impulso do “eu” / do “ego” precisa ser combatido com o “nós”, “o todo”.
Não é algo que se resolve, mas se equilibra, através de mecanismos de controle social, que geram taxas que nos levam para momentos de mais ou menos eu ou nós.
Diante disso, acredito, que estamos saindo do fim de uma etapa de um equilíbrio continuado em que um grupo conseguiu por longo período dar as cartas, ser a banca, definir as regras do jogo.
Conseguiram tal feito ao dominar um ambiente informacional verticalizado, que se consolidou nos últimos 500 anos…e estabelece um poder forte do “eu”, em decadência, gerando crises cada vez mais insolúveis, na maneira de sustentação desse modelo.
Ou seja, nossa taxa do nós está bem baixa e, acredito, ser isso que a Internet vem reequilibrar…introduzindo a oxigenação para que mais gente possa opinar, se articular, fiscalizar.
As pulsões individuais e as coletivas sempre vão estar em conflito e os sistemas (principalmente os que procuram a democracia, esse pior melhor sistema do mundo) tentar criar ferramentas para estimular o nós em detrimento do eu, sempre em aperfeiçoamento, como se vê aqui os furos nos EUA.
Esse salto na maneira de pensar equilíbrios constantes/taxas me permite ver as coisas de forma diferente e talvez mais próximo do que venha ser o real.
E questiona o final do documentário acima comentado em que coloca a culpa em uma das forças, como se não fosse o próprio sistema que deve ser repensado.
É isso,
É isso, que dizes?
Grato por visita e comentário,
Nepô.
Só um detalhe: qual o papel do Madoff nessa história toda? O documentário diz que ninguém foi punido, mas não é verdade. Madoff teve o papel de bode expiatório ( não que não merecesse), mas como foi preso e virou o vilão, serviu para iludir as pessoas de que haveria um senso de justiça. Típico movimento para deixar as coisas do jeito que estão.
Gisela, bom complemento.
Sugiro a você e a todos que assistam “Em um mundo Melhor”, que também ganhou o Oscar este ano de melhor filme estrangeiro.
Nele, se vê também a dificuldade do ser humano, seja onde for, para lidar com a insanidade alheia, complementando com a falta de diálogo entre pais e filhos, contribuindo ainda mais para ampliar esse abismo.
Valeu visita e comentário,
Nepô.