Versão 1.0 – 20/08/13
Ao longo dos protestos de junho de 2013, a mídia brasileira recorreu fortemente a dois pensadores internacionais: Lévy e Castells. Hoje (20/08), o Valor publica uma página inteira sobre o novo livro de Castells: “Redes de Indignação e Esperança – movimentos sociais na era da internet”.
Qual é a diferença entre os dois e por que acho que Lévy nos levará mais longe.
Castells é um sociólogo, com formação marxista, e toda a sua análise sobre o tema, até aqui, pois ainda não li esse último livro, parte ainda de um ponto de vista econômico como motor principal da história.
É a economia que muda o mundo e a chegada da Internet provoca alterações econômicas sui-generis que ele chamou de “informacionalismo”. Eis o trecho que explica bem a visão de Castells, publicado no Valor, por Jorge Félix:
“Com base em uma metodologia historicista, Castells analisa a passagem do capitalismo industrial para um processo definido por ele como informacionalismo. Enquanto no capitalismo industrial as fontes de energia determinavam o ritmo de “modernização”, no capitalismo informacional a produtividade acha-se na tecnologia de geração de conhecimento, de processamento da informação e de comunicação em símbolos”.
Ou seja, as tecnologias cognitivas passam a influenciar AGORA E SÓ AGORA a economia, a partir da chegada da internet, pois criam um modelo de geração de conhecimento, de processamento de informação e de comunicação em símbolos.
A internet é vista como algo sui-generis na história econômica e, por sua vez, na sociedade.
Castells não vê a influência do papel impresso no surgimento do capitalismo. Não vê o papel da escrita no avenço econômico nas civilizações pré-gregas, do alfabeto na cultura grega, berço do pensamento ocidental. E não analisa, assim, que não não foi só a internet que trouxe tecnologias de geração de conhecimento, de processamento de informação ou comunicação de símbolos.
Isso é uma características das mídias na sociedade e não algo que agora acontece. O capitalismo atual é um tecno-sistema econômico movido, até aqui a papel impresso, mídias de massa e computador, antes sem rede e agora com rede digital.
Não faz um vôo filosófico-teórico mais alto, se limitando a trabalhar com algumas ferramentas filosóficas-teóricas que têm disponíveis, que obscurecem seu raio de visão e, o que é pior, seus prognósticos de longo prazo.
O mundo oral, a escrita e agora o digital tiveram o mesmo papel em escalas diferentes. Ou seja, é algo que torna a chegada da Internet NÃO COMO algo surpreendente e sem precedentes históricos, mas como mais uma mudança entre algumas outras.
Mas para isso é preciso sair de uma caixa que, a meu ver, Castells não consegue.
Por outro lado, Lévy que é filósofo da informação, segundo o Wikipédia, parte das tecnologias cognitivas como o principal motor da história. Ele afirma, diferente de Castells, que toda a sociedade, incluindo a economia, são de alguma forma condicionados por ecologias cognitivas.
Vivemos, diferente dos animais, em ecologias cognitivas que, quando mudam, influenciam fortemente mudanças na sociedade.
Lévy com este ponto de vista defende que a sociedade vive momentos de estabilidade e quebras cognitivas, através da massificação e consolidação do uso de tecnologias cognitivas (fala, escrita e computador) que modificam toda a sociedade. Para Lévy, é a mudança tecno-cognitiva que altera os rumos da sociedade e a economia está dentro dessas mudanças e não o contrário, diferente de Castells. Lévy defende que vivemos MAIS UMA e não a única quebra desse tipo, que marca a diferença entre os dois autores de forma profunda.
A visão de Lévy é embasada na Escola de Toronto, que teve como representante principal MacLuhan, que defendeu que o meio é a massagem (mas acabou ficando o meio é a mensagem), quando defende que a mídia faz a nossa cabeça, modifica nosso cérebro, independente do uso que se faz dela. Que é um tipo de bordão dessa escola com vários representantes interessantes.
Note bem que há uma diferença aqui de mente e cérebro. A mente tem consciência ao agir e o cérebro não, se modificaria de forma anatômica sem a nossa consciência, que viria depois que a plástica já foi feita. Esse duelo mente x cérebro é a base de muita discussão que virá daqui por diante.
O que estamos a dizer se falamos de mudanças cerebrais profundas?
Que o ser humano é um animal tecnológico, que o nosso cérebro é uma espécie de gelatina, que os neurocientistas chamam de plástica cerebral, que se modifica, conforme cada contexto. Sendo que uma das quebras principais dessa plástica a chegada de tecnologias cognitivas, que mudam completamente o modo do cérebro operar.
E se o cérebro muda, a sociedade vem atrás dessa mudança.
Diria mais: que a estrutura de poder em rede, fora e dentro do sujeito (com uma visão de Foucalt aqui), se estabelece sobre uma plástica cerebral, que quando muda estabelece um outro patamar, havendo uma dicotomia entre os velhos instrumentos de poder e o novo cérebro que para ser dominado precisa de um novo modelo de autoridades muito mais complexas e sofisticadas que as atuais, que só sem mantém de pé em função da dicotomia modelo cerebral-instrumentos de controles compatíveis.
A mente seria muito mais escrava do cérebro do que supõe nossa vã filosofia!
A proposta de Lévy e da escola de Toronto é muito mais arrojada do que a de Castells, pois implica em uma revisão filosófica-teórica que abala bastante as bases das ciências humanas, pela ordem:
- Da relação do ser humano com a tecnologia, admitindo que somos uma tecno-espécie, que vive em ecologias cognitivas e não em ecologias como os outros animais;
- Da percepção que as grandes mudanças histórias podem ser frutos e ter como origem as quebras e massificações das tecnologias cognitivas, como o monoteísmo (paralelo ao surgimento da escrita), cultura grega (em função da massificação do alfabeto), da renascença e do iluminismo (depois do papel impresso) e da nova primavera ocidental, que se inicia (depois da Internet), tendo como especulei forte influência da demografia.
A divergência de Castells e Lévy, a meu ver, ainda tem razões filosóficas mais profundas do nosso tempo e encontram eco nas mudanças que estão por vir e marcam a cisão que teremos nas ciências humanas daqui por diante com o avanço dos estudos do cérebro.
Questões filosóficas
A base das divergências filosóficas que teremos daqui por diante é o embate da visão pragmática/empirista/indutiva que acredito que Castells representa claramente para a racionalista/dedutiva que Lévy e a escola de Toronto procura trazer.
Castells nos seus livros parte de uma filosofia/teoria com dados, muitos dados para chegar a suas conclusões. Acho que até que é surpreendente o quanto consegue avançar, mas esbarra em uma parede que é do econômico-centrismo, que vem fortemente de Marx e outros, numa visão teórica-incremental.
Não fura essa bolha, pois está engolfado num pragmatismo típico da ciência atual, no qual a filosofia tem pouco espaço para grandes revisões do pensar humano.
Castells é o pensador que conseguiu ir mais longe, e aí há um grande mérito, com os instrumentos que temos hoje disponíveis para analisar a rede.
Lévy já consegue ser mais amplo, adota novos instrumentos e já inaugura na forma e no conteúdo um novo modelo de ciência e filosofia mais apropriada para as fases de reforma/expansão pós revoluções cognitivas (ver mais sobre uma nova epistemologia aqui.)
Consegue dialogar com facilidade com a neurociência que é algo que ainda vai tirar muito sociólogo do sério.
Lévy sugere de forma light, sem fazer muita fumaça, que o olhar sobre o ser humano tenha uma mudança radical, pois não podemos nos pensar como seres naturais, mas um ser natural/artificial cercado e condicionado pelas tecnologias, principalmente tecnologias cognitivas.
Isso aparece de forma mais evidente em Walter Ong, outro membro da escola de Toronto, no livro “Oralidade e Escritura” quando defende as mudanças de estado de consciência humanos diante de novas mídias e uma necessidade de rever a nossa própria identidade.
Do ponto de vista prático, a Escola de Toronto, Lévy no bolo, nos permite estudar, como vários autores já têm feito, a influência das quebras de ecologias cognitivas, desde a Grécia, passando pela Europa pós-Gutemberg com todas as modificações que tais mudanças causaram na sociedade, na política, na economia, na filosofia, na ciência.
O que permite olhar para a Internet com mais maturidade, mais serenidade e menos espanto, sendo mais uma das mudanças provocadas pro mudanças de mídia, o que me parece uma ferramenta mais poderosa de análise do que considerar a Internet como algo inusitado, quase um disco voador sem passado terráqueo.
A Internet para essa visão antropológica tecno-cognitiva é apenas mais uma etapa nesse tecno-humano e não tem nada de sui-generis. Castells, até o momento tem passado longe disso.
O que me intrigou, entretanto, foi o final do artigo do Valor, no qual há uma frase perdida, que me fez querer ler o novo livro dele para saber até que ponto ele já estaria, de alguma forma, se “Torontizando”.
Vejam lá ao falar das mudanças em curso de várias manifestações e seus impactos na sociedade, o autor do artigo termina citando o pesquisador espanhol:
“Castells explica por que (estas mudanças ocorrem): as redes estão mudando a mente das pessoas”.
Se mudam agora, mudanças similares tiveram o mesmo efeito?
Seria a mente que se modifica (através da consciência?) Ou a plástica (cérebro de forma inconsciente) antes mesmo da mente, que viria depois?
Ou os dois em ordem de consciência e inconsciência diferentes, sempre começando pelo cérebro que é anatômico e muda com a nova mídia?
A ler.
Que dizes?
Nepo, a academia acredita que o Levy flutua muito em seus pensamentos sobre a questão tecnológica e o poder das redes. Já adianto que não faço defesa de ninguém, enquanto não ler o novo livro do Castells. Acredito que o catalão é mais pé no chão na análise do momento em que vivemos, ainda não tive contato com o IML do Levy, mas pela palestra que vi na usp tempos atrás, é de se admirar a impressionante teoria que ele vem construindo nos últimos 5 anos. Parabéns pelo Texto
Ana, flutuar é um verbo interessante…
A academia poderia ter uma visão melhor, de maneira geral, se estivesse na vida e diante dos problemas complexos que temos que resolver.
O catalão é pé no chão, mas quem disse que ser pé no chão em grandes rutpuras é eficaz?
Beijos
[…] Entre Lévy e Castells, fico com Lévy […]
[…] Entre Lévy e Castells, fico com Lévy […]
[…] (Falei mais sobre a visão de Castells x Lévy, aqui.) […]
O fato dele ser mais pé no chão o torna mais palatável a audiência atual, sem dúvida.
O texto ficou muito bom, estava procurando uma análise dessas há um tempo e não encontrei. Show de bola.
Ótima comparação bem num tempo interessante, tenho “flutuado” entre estes dois para entender suas proximidades e diferenças! Pelo visto Levy é acometido do mesmo “mal” que o antecessor “Torontiano” McLuhan, em sua relação com a academia.